domingo, 14 de abril de 2013

O Canto do Galo


Oi, gente!
Vou contar hoje um pouquinho sobre um pequeno material que surgiu - como o Jogo do SIM e do NÃO - de uma brincadeira com as palavras inventada por Joaquim, meu filho.

Em 2012, no contexto do projeto que culmina na Feira de Livros da escola, cujo gênero explorado foi a poesia, Joaquim apreciou muitos poemas, seja na escola ou em casa, e foi  aprendendo sobre esse gênero que brinca com as palavras, as sonoridades, seus sentidos e nonsenses, que traz um caráter lúdico, com suas metáforas, sua graça, seu riso ou encantamento... 

Como eu trabalho na escola e sou uma das responsáveis por esse projeto da Feira de Livros (cuido da área de Leitura, Escrita e Oralidade na escola...e Matemática também!), eu estava muito envolvida na produção de oficinas para os professores, indicação de livros, poemas, organização de materiais e propostas, bem como orientação aos professores quanto à produção de poemas pelas crianças (e Joaquim percebia isso). Assim, também para me agradar e fazermos coisinhas juntos, ele investiu muito nessa onda poética que tomou conta de nosso dia a dia. 

Ele também memorizou alguns, que recitava com muito gosto!

Eu lhe apresentei os poemas de Sérgio Capparelli, autor de que gosto muito, e desse autor, ele memorizou alguns pequenos poemas. Outros, maiores, ele recitava junto com a minha leitura, dizendo as passagens que lembrava, enfatizando rimas, respondendo, quando a estrutura do poema era de perguntas e respostas, ou recitando junto comigo quando a estrutura repetitiva permitia essa declamação compartilhada. 

Os que ele mais gostava, desse autor, eram "Minha cama", "Guaraná com canudinho" e "Relâmpago". Todos esses poemas estão na antologia de poemas do autor, intitulada "111 poemas para crianças", da LP&M, que dei pro pai de Joaquim há muito muito tempo atrás, ressaltando o poema "As sardas de Dora", em homenagem (minha) a sua filhota. 

Joaquim costumava recitar os poemas em casa, no carro, em qualquer lugar, orgulhoso que estava, tanto de sua memória quanto de estar fazendo parte dessa grande movimentação coletiva em torno da poesia na escola. Ele se interessou de verdade! 

Dois dos poemas curtinhos que Joaquim memorizou, "Cores" e "Manhã", viraram jogos orais muito interessantes, completamente criados por ele. E de um deles, fizemos um kit para brincar também com o poema escrito. É desses jogos orais e escrito que vou falar para vocês agora.

Manhã

O Canto
Do galo
Abre as cortinas
Do dia

Cores

No fim do dia, cansadas,
As borboletas penduram as asas,
Pra não amarrotar as cores.

Um dia, indo para a escola, ele começou a recitar o poema Manhã e, logo em seguida, começou a propositadamente trocar palavras de lugar no poema, criando efeitos de sentido interessantes, engraçados e, por vezes, nonsense. Rimos muito e eu também contribui com algumas sugestões. 

"O canto do galo abre as cortinas do dia" virou, para Joaquim, "O canto do galo abre a cortina do dia", no singular. Não teve jeito de ele consertar... Mas, no fim, isso facilitou o jogo de palavras que inventou... com a licença de Capparelli. Licença, viu, Capparelli? 

Olhem as novas frases que surgiram dessa brincadeira e vejam que interessante, ainda mais inventada por uma criança de 5 anos!:

O canto da cortina abre o dia do galo
O dia do galo abre o canto da cortina
O canto do dia abre a cortina do galo
A cortina do galo abre o canto do dia
O galo do dia abre a cortina do canto

Tudo isso só trocando, oralmente, as palavras de lugar. Gente, achei isso que ele inventou  fantástico! Decompondo e recompondo o poema, trocando as palavras de lugar na frase, ele descobriu uma brincadeira muito bacana com os sentidos, além de ser uma ótima brincadeira metalinguística com frases e palavras. Sem saber, ele brinca aí, inclusive, com o eixo paradigmático da frase - como diriam os linguistas - que é o eixo das possibilidades, das relações virtuais entre unidades da frase que são comutáveis por outras, ausentes na frase, mas possíveis (ex. Em "Eu como banana", posso trocar banana por maçã, feijão, ou trocar o verbo conjugado "como" por amo, detesto...). 

Pois bem, vejam que coisa, né? Nesse caso ele trocou as próprias palavras da frase de lugar,  cambiando os possíveis nesse eixo paradigmático, experimentando os sentidos engraçados que isso originava. E, como bom conhecedor intuitivo da estrutura de sua língua, só trocava determinadas palavras, não todas... Trocava os substantivos entre si, que por sinal, por vezes mudavam de sentido: em "o canto do galo", canto é canto, substantivo relacionado ao verbo cantar. Já em "o canto da cortina" ele pensou no canto mesmo, na junta, na esquina da cortina, no cantinho dela, ponto de encontro entre duas retas, ainda que retas de tecido esvoaçante. Fantástico! Joaquim brincou de lego com as palavras, diriam os mais poéticos!

E toda essa multiplicação de sentidos que a brincadeira proporcionou certamente o fez se apropriar ainda mais da versão original, já que dizia coisas lindas sobre as imagens poéticas que estavam ali postas, como o que seria abrir as cortinas - ou a cortina -do dia... 

Como poema não é para ser interpretado ao pé da letra, nem é caso de impor um único modo de interpretá-lo, deixei voar a polissemia das imagens poéticas e, por dias, ele voou longe. E bem perto da simplicidade complexa do poema...:

- Mãe, quando abre a cortina, fica claro, não é? Então... Abre a cortina para ficar de manhã e fecha para ficar de noite. E a culpa é do galo!

Depois que tomou gosto, ele começou a fazer a mesma brincadeira com o poema Cores, ainda que nesse poema as trocas fossem mais complexas e as possibilidades, menores. Assim, surgiram coisas como:

No fim do dia, cansadas,
As borboletas penduram as cores,
Pra não amarrotar as asas.

No fim do dia, cansadas,
As borboletas amarrotam as asas,
Pra não pendurar as cores.

No fim do dia, cansadas,
As asas penduram as cores
Pra não amarrotar as borboletas.

E assim ia ele, inventando... e eu gostando e entrando na brincadeira também. Inventamos muitos jeitos de dizer o poema. É gostoso, experimentem!

Depois de toda essa exploração oral, resolvemos fazer um fatiado do poema Manhã. Na verdade, brincar com o fatiado foi um jeito que pensei para contar essa história nossa no Sarau do UQT, grupo do qual faço parte. No fim, lá ele nem quis fazer comigo, tímido que é, mas sem a plateia, em casa, brincamos muito. Como ele sabia o texto de cor, íamos montando a partir do reconhecimento que ele ia fazendo das palavras, ajustando o oral e o escrito, ajudado também por minhas intervenções, questionamentos. Agora ele brincava de lego com palavras escritas, como tijolinhos de som e sentido que ia juntando, separando, recombinado. Foi muito legal!

No início não tinha me ocorrido fazer o fatiado, mas depois caiu a ficha, e daria muito certo, especialmente se mantivéssemos "a cortina" no singular... Essa adaptação era importante na escrita, para não ter que fazer mais fichas com artigos e preposições para encaixar com cortinas a cada vez que a trocássemos de lugar, nem o verbo "abre" precisaria ter a versão "abrem", para o mesmo fim. Ia ser mais complicado. Como esse singular já foi incorporado na brincadeira oral, achei que era tudo bem mantê-lo no fatiado. Capparelli que nos perdoe.

E o fatiado ficou assim:

E recombinando de outros jeitos...


Bom, é isso, gente. Esse foi o relato de outra experiência lúdica de Joaquim com as palavras, frutos de nossas interações em torno da linguagem oral e escrita.

E não esqueçam, no poema original são as cortinas, metáfora da manhã, que são abertas pelo canto do galo... no plural, heim?
Lica