segunda-feira, 15 de maio de 2017

Sobre materiais, produção de materiais e o que é antigo...

Raimunda era o nome dela...Dava pra se perder nos seus longos cabelos, tão compridos que eram. Enquanto "dava" suas aula, não dava para não nos perdermos em algum fio preso no coque, imaginando se, soltos, iam até os joelhos. As letras e os números se embaralhavam constantemente, interrompidos por esses pensamentos...

Raimunda tinha uma tesoura. Uma tesoura grande, de picote. Cortava bordas de pequenos papéis coloridos que se revelavam cheio de dentes, diante de nós, igualmente cheios de dentes em sorrisos de perplexidade... Chegavam assim os enunciados matemáticos ou as consignas de interpretação de textos, sempre embalados por cores e formas que os tornavam mais desejados, esperados, mais bem-vindos.
Os papeizinhos, que chegavam, às vezes, a nós, davam notícia de que as tesouras de Raimunda trabalhavam bastante (mas as de cortar papel, não a de cortar cabelo...esses insistiam em serem longos e misteriosos).

Eu adorava Raimunda. Eu adorava aqueles papeizinhos. Talvez eu adorasse Raimunda, porque eu adorava ardorosamente aqueles pedacinhos coloridos, cobertos de palavras, com marcas do gesto de escrever e de cortar. Talvez já se anunciasse aí minha vocação para as artesanias e para as "artes do fazer" próprias ao profesor. Eu a observava! Quieta, com adoração.

Eu era boa aluna. Sempre fui. Nunca precisei de banca. Mas, com Raimunda, eu fazia banca. Malandra! Era na banca que os papeizinhos nos frequentavam mais vezes. E mais coloridos. Podíamos, lá, observar as linhas retas se transformarem, diante de nossos olhos e ouvidos, em lindos picotes que formavam quadrados, retângulos, círculos, embalados pela melodia forte da tesoura deslizando no papel: crec, crec... Era uma tesoura pesada, o som que fazia era potente. E eu... eu observava atenta aquela transformação, que acontecia emoldurada por meus olhos ávidos de admiração e um desejo enorme de saber fazer tamanhas delicadezas. Ô tempo bom esse de ser tocado por algo singelo, de botar beleza em algo tão banal e pragmático, de demorar-se nos detalhes, durar nas belezas simples, de se sentir o vivido, tempo de ter tempo, tempo de silêncios, mesmo que barulhentos. Tempo de cultivar a atenção, a delicadeza, a espera. Esse pode ser também aprendizado do ofício docente, ajudar alunos a ver beleza no mundo.

Não sei nada de Raimunda...tanto tempo se passou...mas quando vejo hoje no que deu a menininha, aluna na escola e na banca, fico quase com certeza de que tem um pouquinho de Raimunda em mim e em meu "ser professora". E, claro, ela provavelmente nem se reconheceria em meu relato - ou nessa espécie de crônica - pois essa é a Raimunda que fiz para mim e transformei em um modelo de professora. Que, antes de tudo, soube me acolher na interação mais próxima, mesmo eu não precisando dela para questões de conteúdo escolar.
...
Vejo Raimunda hoje, quando observo olhos ávidos, embora já crescidos, diante de cores e formas, palavras e imagens, dentinhos e ondinhas, nas beiradas das coisinhas que faço. Não é só isso, claro, não é só sensorial ou material. Expressa um trabalho de alfabetização ali, e uma trabalho de formação. Expressa a própria artesania do ofício docente, para além das materialidades. É muito mais que isso, que papéis, gestos artesãos e recursos pedagógicos. Há sim, as mãos que fabricam, cortam, colam, escrevem, montam, numa ação de fazer pensando, gestos e pensamento formando amálgama. Mas há também as "mãos" que proporcionam experiências e apresentam aos estudantes o mundo a ser aprendido, apreciado, pensado, como Raimunda me apresentou também, por trás dos papéis. Ressoa em mim palavras de Jorge Larrosa aqui, quando penso nessas experiências singelas, mas potentes, e no cenário do ofício docente, de um professor artífice para além da dimensão material, que manipula materialidades, mas também o mundo, conduzindo a novos olhares sobre ele, transformações, aprendizagens. E também penso nele quanto ao tempo de cultivar a atenção e delicadezas, como a essas delicadezas das tesouras de Raimunda - ou delicadezas que criei ao olhar para esses gestos e materiais. Refiro-me aqui ao texto "Notas sobre a experiência e o saber de experiência" (LARROSA, 2002, p. 24). 

E destaco o seguinte trecho:
"A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço”. (LARROSA, 2002)
O que os olhos ávidos de professores em formação me dizem sobre mim e o meu modo de ser professora, eu não sei ao certo...é como se eu aprendesse a fazer uma mágica, que só quem me olha, vê... Eu mesma não sei bem ver. Só fazer...só faço... é muito natural... O sensorial tem peso nessas coisas de afeto pelas artes e fazeres e na memória do que foi bom de nossa passagem pela escola. 

E a professora que sou revisita a menininha na escola, aluna de Raimunda, e a própria professora que ela era, com esses olhos de uma experiência que me tocou. Que olhei mais devagar, escutei mais devagar, que durei nela, e até hoje revisito no tempo da paciência de estar constantemente me reconhecendo, me formando e me constituindo como professora, esboçando a posteriori esse trajeto, e ajudando outros/as a se tornarem as/os professores que serão. E com isso tudo, busco sempre não perder meu laço com as experiências e a artesania desse ofício. É minha profissão, mas é também meu ofício, meu sonho, minha vida, minha forma de ver o mundo.

Mas é fato. Quer saber? Pensando em tudo isso, e mesmo que eu não saiba ao certo se tudo o que lembro e conto foi mesmo exatamente como lembro e conto, tenho agora certeza, mais do que absoluta, de que trouxe um pouquinho de Raimunda em mim. Do que fiz Raimunda significar para mim, os gestos, o acolhimento, as belezas singelas do ofício que aprendi observando-a em meu silêncio e maravilhamento.

E esses adultos de olhos ávidos que recebo em minhas oficinas de produção de materiais para alfabetizar também podem saber das mágicas que podem operar pequenos detalhes no dia a dia de uma sala de aula...inclusive valorando os gestos de fabricar coisinhas coloridas para seus alunos. São esses que vejo chegar perto de mim, querendo aprender a fazer esses materiais, deslumbrados quando percebem que podem mais do que pensavam; felizes de se verem em suas produções, pois mesmo materiais idênticos saem muito diferentes pela arte de cada um; surpresos de aprender alguma técnica ou estética bem simples, mas que nunca tinha ocorrido antes; atentos para tudo o que pode ajudar na beleza e funcionalidade do material para o uso na sala cheia de meninos e meninas aprendendo a ler e a escrever; e refletindo para além do material, sobre seus usos pedagógicos, alcances, limites e adaptações...

Mas eis que, vez por outra, encontramos um que – mesmo que com certo encanto no canto do olho – avalia essas produções como algo “meio antigo”...E aí vamos falar sobre isso de "antigo".

Se antigo é esse fazer do professor, que como Raimunda cortava coisinhas para suas crianças, digo “que pena”! Que pena que a necessária profissionalização docente, combinada com condições de trabalho frequentemente sufocantes, tirou essa fabricação de materiais das agendas do professor, assim como a escola mercantilizada vem minando a dimensão artesã e autoral desse ofício. Que pena que não se tem mais tempo para fazer isso, que há tantos sistemas estruturados, pré-determinados, que pena que há muitas patrulhas sobre a produção autoral dos professores, que pena que muitos esperam que tudo já venha pronto, padronizado... e com menos chance de despertar a lembrança de um professor por aquele gesto singelo que só ele tinha de cortar o papel e de nos tirar um sorriso, ou de chamar nossa atenção para algo do mundo pedindo um outro olhar... Tá, se sou antiga? Sou...e sou com certo orgulho de mim por isso. Ponto! Tenho alguma nostalgia da escola de outro tempo? Talvez. Nada que não possa suscitar argumentações interessantes, que deixo para outra ocasião. Por ora vamos futucar essa ideia de "antigo".

Mas se "antigo" é porque são materiais feitos com papel, essa “coisa antiga”, diante de um mundo cada vez mais tecnológico, quanto a isso, também há muitos argumentos, mas estou com preguiça de desenvolver. Quem vive a sala de aula e quem experimenta os materiais, sabe bem do que estou falando. Ademais, numa escola que vai se alinhando, cada vez mais aos ditames do mercado, à lógica dos resultados, dos imperativos tecnológicos, das performances instrumentais, vejo algum valor na afirmação da dimensão artífice do ofício docente. De todo modo, já escrevi um pouco sobre isso aqui, há muito tempo atrás, e lá já trago alguns argumentos sobre a questão da tecnologia. Por ora bastam. AQUI

Por último, e mais grave de todas as observações (e por isso desenvolverei mais detalhadamente), é de quem faz muxoxo, por julgar antigo um material que traz palavras, letras, reflexão sobre sons – essas unidades da língua menores que o texto, tão mal compreendidas em um modo tradicional de alfabetizar, e tão maltratadas quando encontramos modos mais amplos de compreender a questão da linguagem.

Ora, ninguém está negando o fundamento de base de que a apropriação da escrita se dá no contexto da linguagem viva, de práticas letradas, no convívio com a cultura escrita. Afirmar o texto, os gêneros discursivos, foi um avanço nas concepções de ensino e aprendizagem da língua escrita, mas na prática, houve equívocos, dicotomizações e também reducionismos ligados a isso. Mas falarei hoje apenas de um aspecto dessa discussão, que se refere ao lugar em que se jogou o trabalho com a "faceta linguística" da apropriação da língua escrita. Não podemos “jogar o bebê fora com a água do banho”, como se diz. Virou quase heresia propor atividades em que a reflexão foca em letras, sons, palavras, sem o contexto de um texto (como se, aliás, jogar e brincar com sonoridades e palavras não fossem também, por si só, práticas socioculturais, em contexto de jogos, de brincadeiras com a oralidade lúdica). A alfabetização precisa focar também nos aspectos linguísticos, sejam esses notacionais ou fonológicos – não podemos esquecer que a notação alfabética é de base fonológica, ou seja, não é possível alfabetizar sem que essa dimensão esteja presente de algum modo. E ortográfica, ou seja, é preciso ir dando conta das convenções da escrita, perverso é esperar que descubram isso sozinhos.
Então, é preciso que se possa compreender a importância da faceta linguística (como diz Magda Soares), junto às facetas socioculturais e interativas – e nisso não há nada de antigo. As crianças são capazes de explorar inteligentemente o mundo da linguagem, dos textos, das palavras, mas também das letras, dos sons da língua, de palavras e parte de palavras... Trata-se de cognição, não de percepção. De metacognição. Refletir, construir conhecimentos na interação com os outros e com o objeto de conhecimento é diferente de treinamento mecânico, descontextualizado. 

Não há porque deixar as unidades menores que as palavras de fora das possibilidades de reflexão na alfabetização. A criança pensa – e pensa sobre tudo! Desse modo, é preciso rediscutir certas práticas e didáticas que ignoram a reflexão fonológica e o ensino sistemático de aspectos linguísticos do sistema como situações produtivas para a criança avançar nas suas construções e apropriações do funcionamento da escrita. Já viu banir as letras como algo meio “pouco” e menor no ensino da escrita? Já viu que absurdo tomar unidades como sílaba, fonema quase que como “palavrões”? Claro que a questão é COMO se faz isso. Não precisamos sair do oposto de uma alfabetização mecânica, baseada no ensino descontextualizado e repetitivo de letras e sílabas para o extremo de banir essas unidades do processo de ensino da língua escrita. É perverso não abordá-las, ou abordá-las muito assistematicamente em situação de uso dos textos, mas esperar das crianças que construam sozinhas esses conhecimentos. As situações de usos de textos podem ser também sistematizadas para se refletir sobre a notação escrita. Aliás, não é justo isso que propomos ao partir de textos da tradição oral? 

E aí, justamente, é que os jogos e materiais diversos para a alfabetização entram, como possibilidade metodológica produtiva de reflexão sobre a língua em contextos lúdicos e letrados. Assim, longe de antiga, a concepção que embasa os usos desses materiais é muito contemporânea, pois, assumindo a escrita como prática social e sistema complexo de notação da língua, busca caminhos para articular as aprendizagens linguísticas às socioculturais e discursivas, já liberta de concepções hegemônicas que, ao questionar os velhos métodos, jogaram fora junto aspectos importantes para a alfabetização. Busca a INTEGRAÇÃO! 

De qualquer modo, embora possibilitando situações de reflexão sobre a escrita baseadas em concepções contemporâneas de alfabetização, esse momento de fabricação e conversa, de recorte e picote, de colagem e bricolagem, me lembra, sim, um viés de tempo mais antigo, mas bem positivo, em que as professoras faziam manualidades para levar aos seus alunos, num gesto jeitoso que, certamente, deixa marcas. Como Raimunda me deixou.

Se há algo de antigo relativo aos materiais que proponho nas oficinas, não é o seu uso ou as concepções subjacentes a eles. Talvez sim (ou não) os próprios materiais – artesanais na contramão de um mundo cada vez mais pré-fabricado – e a sua produção pelos próprios professores – que já não têm tempo, que “querem tudo pronto” - ou querem tudo pronto por eles, em um esforço de instrumentalização dos sujeitos, que passam a ser meros aplicadores do feito por terceiros. Não, não estou dizendo que os/as professores/as têm que fazer tudo, todo material. Não é isso, evidentemente. Materiais de referência, assim com práticas de referência são importantes referenciais para a ação docente qualificada, e lançar mão deles não significa não terem autoria. Ao selecionar, combinar, organizar a situação de ensino, tudo isso é essencial do ofício e é o que, de fato, torna materiais em recursos didáticos. Mas creio que deva também haver espaço para se fazer coisas para as demandas singulares de cada docente, considerando suas próprias experiências, repertórios culturais, e as próprias experiências singulares da turma. Eu ainda acredito em professores/as que querem ser autores/as de sua prática, que não querem tudo pronto, que querem sua marca e de suas crianças nas estratégias e recursos didático-pedagógicos que selecionam, utilizam e produzem. Desse antigo outro - ah, desse - eu quero sim que falem, desse tenho orgulho!

Por ora, é isso. Um abraço a Raimunda, onde quer que ela esteja! Ah, tem uma pró Vera também em minhas memórias...mas fica ela em suspenso. O que me restou dela foi o sentimento, a referência que foi para mim de acolhimento, a ponto de, mais tarde no meu percurso de escolarização, ter conquistado ir visitá-la em sua casa. Não lembro muito mais que isso. E tem Bisa - sobre essa guardo para mim, por ora - mas foi uma luz. Professoras que me constituíram e me fizeram, também, professora.
Lica  

Texto escrito no período das Oficinas de produção de material para alfabetização na FACED/UFBA, em maio de 2017.

Adendo em 2020: Lendo o livro Esperando não se sabe o quê: sobre o ofício de professor, de Larrosa com a colaboração de outros colegas, associei algumas das ideias ali discutidas a essa "crônica" de Raimunda, especialmente no momento em que li o trecho abaixo: 

(Belo Horizonte: Autêntica, 2018)

Observação: Entende-se "vocação" aqui no sentido discutido por Larrosa não como um termo que remeteria a um ofício idealizado e com tudo o que a ideia de ser vocacionado traria, o que ajudaria a deslegitimar a profissionalização docente, mas valorizando signos potentes desse ofício que traz (ou trazia) algo de artífice e  avaliando os ganhos e perdas do banimento da palavra "vocação" do léxico docente. No livro de 2021, Elogio do Professor, outras ideias sobre a palavra vocação aparecem no diálogo de Larrosa com Glaucia Costa. Larrosa assume aí também certa "nostalgia de outro estado de escola" nessa argumentação da docência como ofício e sua dimensão de vocação.