quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Abecê Nordestino. PARTE 1: As letras e o alfabeto nordestino

Antecede esse texto a parte da Introdução, já postada.
Discutir sobre o abecê nordestino no contexto da alfabetização, requer tanto uma abordagem de cunho cultural, quanto linguística e pedagógica. Nessa primeira parte busca-se contextualizar a questão da nomeação das letras nesse abecê, esboçando o posicionamento quanto ao lugar do aprendizado das letras na apropriação da escrita alfabética, bem como introduzir as questões culturais e linguísticas que envolvem os usos e o ensino do abecê nordestino, apresentando, em especial, o argumento sociolinguístico que perpassa a problemática posta nesse estudo.
No post aqui no blog, irei apenas trazer notícias do que será discutido nessa parte, no estudo que será publicado em breve, tanto devido ao tamanho do texto, quanto para manter a surpresa. 
a. Letras...seus nomes, seus sons, seus traçados...
Nessa parte, vamos discutir sobre o lugar das letras na alfabetização. Entre perspectivas que negligenciam a aprendizagem das letras, pois enfatizam que a alfabetização se dá na imersão nas práticas letradas, e, no outro extremo, a perspectiva que aborda o ensino das letras, seus traçados, seus nomes e/ou seus sons, de forma mecânica e descontextualizada das práticas de leitura e escrita, é preciso, e possível, achar um caminho outro que não essa oscilação entre extremos. Aprender os elementos da notação alfabética também faz parte das aprendizagens relativas à cultura escrita e aprender as letras não se resume a aprender uma lista de caracteres. As letras são os caracteres da escrita! Caracteres de um sistema complexo. As crianças que convivem com a cultura escrita, desde bem pequenas, sabem disso, podem saber disso, querem saber. Elas têm contato com letras de diversos tipos, traçados, presentes em diversos materiais, em diferentes situações socioculturais, apresentando, desde cedo, um interesse crescente por essas marcas gráficas, principalmente aquelas letras presentes em seus nomes próprios, de seus familiares e colegas.
Exemplo de atividade mecânica tradicional.
Para superar práticas de alfabetização que se construíram operando um apagamento das práticas de leitura e escrita, que investiam na cantilena do alfabeto inteiro, na grafia de letras individualizadas, descontextualizadas, na soletração de letras e/ou na junção delas em sílabas soltas, foi preciso radicalizar, tivemos que nos armar contra isso, que era igualmente maltratar os caracteres da escrita alfabética. Mas será que, para defendermos as perspectivas com foco nos textos e discursos, é necessário nos armar contra as letras em si mesmas e seu aprendizado, operando igualmente um apagamento dos aspectos linguísticos da notação alfabética? É preciso aprender as letras, claro! Aprender a reconhecê-las e grafá-las, aprender seus nomes, para podermos nos referir a elas e ir aprendendo as relações com seus “sons”,– são aspectos que fazem parte das aprendizagens linguísticas e da metalinguagem envolvida no aspecto notacional da linguagem escrita.
Aprender os nomes das letras, discutiremos mais adiante, é importante também porque os nomes dão pistas de seus “sons”, no caminho de apropriação da notação alfabética.
Os estudos históricos e linguísticos de Cagliari e Massini-Cagliari (1999) nos ensinam sobre a constituição e a beleza do alfabeto, suas possibilidades e limites, sobre a configuração gráfica e funcional das letras e a relação entre essa configuração gráfica e a configuração funcional, na alfabetização,  bem como nos ensinam sobre o princípio acrofônico (CAGLIARI, 2009a, 2009b), que usamos para decifrar os valores sonoros das letras, e sobre o qual falaremos muito aqui ainda.  Com Cagliari (2009a, 2009b, 2011) aprendemos tantas coisas interessantes sobre as letras e o alfabeto, através dos tempos e espaços, na história da constituição dos sistemas de escrita pela humanidade. Essa história mostra a importância das letras na constituição histórico-social da escrita, do sistema alfabético, e em sua aprendizagem pelos sujeitos. É a essa potência que nos referimos aqui ao falar das letras. 


As letras não negam os textos! Elas são os seus tijolos. Assim, reafirmo as letras e a sua aprendizagem como aspectos importantes no campo da alfabetização, marcas que interessam às crianças – mesmo às pequenas, quando convivem com a escrita no dia a dia. Trata-se de um conhecimento que é social, que precisa ser ensinado às crianças, no contexto da apropriação da cultura escrita.
Bom, mas essa história toda sobre letras é, também, para justificar a conversa sobre o alfabeto nordestino – ou do  abecê do sertão, como dizem. Ao menos, por ora, por isso. Ou seja,uma conversa sobre o jeito de chamar as letras, atribuído ao falar do Nordeste, do sertão. E vamos então ao abecê nordestino.
b. O abecê nordestino
O jeito de falar as letras no Nordeste é referido, muitas vezes, como uma variedade linguística do nordestino, outras vezes como vício de linguagem, curiosidade exótica, às vezes com uma tolerância regional quase romântica, outras vezes sendo alvo de chacota e preconceito, como vimos aqui. Como nos ensina Maurizzio Gnerre (1985, p. 4)“[...] uma variedade linguística ‘vale’ o que ‘valem’ na sociedade os seus falantes, isto é, como reflexo do poder e da autoridade que eles têm nas relações econômicas e sociais”, e nesse quesito, o preconceito com o Nordeste extrapola as questões linguísticas, o preconceito linguístico é, pois, antes de tudo um preconceito social. Em vez de tomar todas as formas como variações, um modo de falar, nessa perspectiva, é visto em comparação com uma forma tomada como a correta – que o é por razões históricas, políticas, sociais, não propriamente linguísticas. Como nos lembra Bagno (2002a, p. 180), Fontes, referindo-se ao português do Brasil em relação ao lusitano,  já denunciava, em 1945, que o “desprezo de nossa língua anda sempre irmanado ao descaso por tudo o que ela representa: a gente e a terra do Brasil”. O mesmo se dá entre os falares, as gentes e as terras de diferentes regiões do Brasil.
Como pano de fundo sociocultural em que a questão do abecê nordestino está ancorada, e fazendo coro com o campo científico de estudos sobre as variedades linguísticas e sobre o preconceito social envolvido nessas questões, trago aqui a voz de Marcos Bagno, no prefácio do Dicionário do Nordeste, de Fred Navarro, que diz que, apesar de todo o avanço científico na área da linguística, especialmente da sociolinguística, continua circulando na sociedade concepções de língua falada e escrita que são arcaicas. O autor, de certo modo, ressalta o papel da mídia brasileira, que não parece estar interessada em dar um tratamento científico aos fenômenos de linguagem, tratando do tema a partir de caricaturas dos falares regionais. Diz Bagno (apud NAVARRO, 2004, p. 12): “Em suas manifestações sobre a língua, a mídia brasileira perpetua uma série de crenças infundadas, baseadas numa visão estreitamente normativista e estereotipada dos conceitos de ‘língua certa’ e ‘língua errada’” que “ajudam a preservar e a nutrir um tipo de preconceito profundamente arraigado na nossa cultura, o preconceito linguístico, fator de exclusão social”.
Dialogando com essa perspectiva de fundo – mas não apenas essa – é que vou me debruçar aqui sobre o abecê do nordeste, ou seja, o jeito de nomear as letras fê, guê, ji, lê, mê, nê, rê, si. Lembro, inclusive – como já postei aqui numa das provocações que iniciaram essa discussão – que essas formas estão registradas em dicionário (Houaiss, Aurélio e outros) e indica-se outras possíveis designações no Acordo Ortográfico de 1990, reiterado em 2009. O argumento – tal qual ouvi ou li aqui e ali – de que esse abecê “oficial” seria o certo porque “está na gramática”, nas normas para a língua, não tem lastro nos estudos sociolinguísticos e nem mesmo nesses documentos descritivos ou normativos. Para nós, da área de linguagem, não há nenhuma dúvida de que gramática não é sinônimo de língua – que é muito mais ampla e apresenta variações – para o senso comum, no entanto, esse poderia ainda se constituir em um argumento para defender o alfabeto “oficial” como o correto e basear posicionamentos preconceituosos. Vemos no entanto, que nem isso se sustenta. Precisamos, pois, sair de uma posição de preconceito ou de ingenuidade, e estabelecer uma discussão realmente frutífera e esclarecida sobre o tema.
E para dar início a essa discussão esclarecida, começaremos pelos artistas nordestinos da palavra, representantes da voz da cultura popular em articulações com a cultura em geral, que muito nos ensinam nesse sentido. Luiz Gonzaga, em seu “ABC do sertão” (composta com Zé Dantas), é quem nos dá a notícia mais certeira do jeito de falar o alfabeto no sertão nordestino. Assim também é o cordel “A letra é rê e não erre”, do baiano Noédson Valois, o Nonói contador de “causos”, menos conhecido, que afirma esse abecê, defendendo-o melhor do que nós – estudiosos do campo da linguagem – poderíamos fazê-lo.

Ouvir aqui.
A canção contribuiu muito para divulgar essa prática do ensino do alfabeto, inclusive, fora do Nordeste do Brasil, mas, a despeito disso, como vimos na quinta provocação sobre o abecê nordestino, postado aqui no blog, há quem consiga até mesmo criticar a canção, sob o argumento de que “assassina a língua portuguesa”, ou que Gonzagão era analfabeto e por isso não conhecia os “fonemas”, dentre outras pérolas, que vocês podem ver aqui. Note-se, entretanto, que, de algum modo, o uso desse abecê aparece na canção como algo escolar: “pros caboclo ler, têm que aprender outro abecê”, “na escola é engraçado...”. Se Lua fala do sertão por contraste, como alguém que se encontra num entre-lugar, do qual pode ver a diferença, pode julgar “engraçado”, quase assumindo – digamos assim – certa comicidade ou atraso na situação. Ou seja, fala para uns e para outros, então.
Nonói, por sua vez, é mais explícito no seu jogo de contrastes, argumenta e contra-argumenta sem dó. Falar erre, esse, ele... seria, para ele, uma inovação sem necessidade, o abecê “oficial” seria uma espécie de “remendo”. E, para isso, brinca com as palavras: “a letra é rê e não erre!” Com Nonói, não vamos errar!
CD Bahia Singular e Plural (IRDEB, 2000) – Vol. V (faixa 6)
Ouvir aqui: 

No caso desse cordel, a afirmação do uso do abecê aparece para além da escola, para além do momento do ensino da leitura – “é assim que a gente lê” –, embora, evidentemente, relacione-se também com o contexto escolar. 

Essa pérola de Nonói foi José Rêgo que me mostrou, e faz parte, igualmente, do repertório da Canastra Real, junto com o “ABC do sertão”. 
Antes de seguir, quero não deixar dúvidas a respeito do lugar do qual eu mesma falo – sou nordestina e o alfabeto que aprendi, aos 5 ou 6 anos, era nordestino... (e eu não era do sertão, mas de Salvador mesmo). Falo desse lugar... Então, sigamos.
Já vi atribuírem o uso desse alfabeto no sertão ao fato de os professores, nesse contexto, serem, em grande parte, professores leigos, antes das instituições e dos programas de formação chegarem aos municípios mais distantes dos centros urbanos. Ora, podemos nos perguntar: por serem leigos, não tiveram acesso ao conhecimento “correto” do nome das letras ou, por estarem longe do discurso oficial, estavam menos sujeitos à “colonização” desse modo de falar, à hegemonia dos modos de ser da linguagem falada nas regiões sul e sudeste? Será que ele era usado só no sertão mesmo? Sou moça da alfabetizada no início dos anos 70, na capital, zona urbana litorânea, minha professora era formada, e só vim conhecer o efe, gê, jota, ele, eme, ene, erre, esse quando bem maior que isso! Até hoje oscilo entre um e outro...e pronuncio, sem pensar nem pestanejar, normalmente, as letras “nordestinas”. O alfabeto sai, de mim, mais rápido e natural assim... E então, mesmo considerando que não é tão simples discernir o alcance daquilo que venha a ser “sertão”, se no Brasil o conceito é, geralmente, associado ao interior, bem como à aridez, ao atraso, à miséria, ao iletrado, de falar chulo, e, mais objetivamente, no sentido geográfico, considerado uma subárea ou sub-região que envolve vários Estados – Alagoas, Bahia, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe – podemos, então, questionar que seja só do sertão mesmo, ainda que reconheçamos sua forte identidade sertaneja – quem somos nós para negar Seu Lua, não é? Mas, então, por que esse alfabeto ficou sendo no Nordeste? Porque ficou sendo do sertão? É do Nordeste ou é do sertão? E é só do Nordeste? Por que será que permaneceu mais forte na Bahia? Por que será que na Bahia não é só no sertão que “se ouve tanto ê”, diferente de outras capitais que estão, efetivamente, na sub-região do sertão, mas já o “esqueceram”? Será que no processo de “invenção” do Nordeste, tal qual discute Albuquerque Jr. (2009), toda a região Nordeste ganhou um caráter sertanejo e por isso, caberia falar de abecê do sertão, mesmo havendo uso na capital, ao menos na Bahia? E mais... quem determinou o alfabeto “correto”? De onde surgiu o efe, e de onde surgiu o fê? O gê, o guê, o jota, o ji?... Qual as raízes de cada um deles?
Essas são questões que precisamos colocar, mesmo que algumas, não consigamos responder. Para tentar compreender alguns desses aspectos, ou ao menos buscar mais indícios e trazer a complexidade da questão à mostra, se faz necessário mergulhar em um campo complexo de informações históricas, que envolvem ora a história da escrita, da constituição do alfabeto,ora a história dos métodos de alfabetização no Brasil. E ainda tem a cultura do Nordeste...São muitos aspectos a considerar.
Um argumento de base nessa questão é o argumento das variedades linguísticas e suas relações com questões de ordem cultural e sociopolítica. Entretanto, mesmo se tomarmos a questão do abecê pelo viés da variação linguística regional, com todo o respaldo sociolinguístico e cultural para validá-lo, ainda me parece faltar uma discussão mais ampla sobre ouso desses dois tipos de alfabeto, suas origens, seus usos, suas funcionalidades. Assim, é pertinente situar a problemática e trazer alguns aspectos para continuarmos a pensar sobre isso, fundamentando nossa defesa do alfabeto que usávamos e ainda usamos, em alguma medida, no Nordeste, e buscando um posicionamento mais potente diante desse uso. Embora não seja uma pesquisa fácil de ser feita, e se ache pouca coisa sistematizada sobre o tema, quero levantar ao menos alguns aspectos que possam, porventura, contribuir nesse sentido. E não apenas para os nordestinos! Trata-se de uma herança cultural brasileira e da história da alfabetização no Brasil!
Nisso, saber como, historicamente, se chegou a essas duas formas de designar certas letras – o fê, guê, ji, lê, mê, nê, rê, si e o efe, gê, jota, ele, eme, ene, erre e esse – ajuda bastante a situar a questão de outro modo. Quem traz alguma informação sobre isso, desde a constituição de nosso alfabeto latino, é o linguista Luiz Carlos Cagliari, ao tratar da origem do alfabeto na história da escrita (Parte 2). Cagliari é quem nos ajuda a desmistificar, em primeiro lugar, isso de que uma forma seja mais correta que a outra (2009a), mostrando as origens remotas de ambas as formas do alfabeto.

Nada mais pertinente para combater o preconceito linguístico e o tom jocoso do preconceito social, imbricado naquele, do que passear um pouco pela historicidade dos fenômenos. Não para criar disputas, justificar-se, mas para reposicionarmos a questão em outros termos. É sobre isso que falaremos na parte 2, no próximo post. Aqui!

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

O ABECÊ NORDESTINO E AS LETRAS NA ALFABETIZAÇÃO


Introdução

Lá no meu sertão pros caboclo lê
Têm que aprender um outro ABC
O jota é ji, o éle é lê
O ésse é si, mas o érre
Tem nome de rê

Luiz Gonzaga/Zé Dantas

Há muito tempo me interesso por alfabetização...e há muito tempo me interesso pelo alfabeto... e pelo “alfabeto” que se falava e ainda se fala em alguns lugares no Nordeste, e que ainda se ouve fortemente na Bahia. Por aqui ainda se vê ensinado nas escolas, como vamos constatar com a pesquisa que estou fazendo entre professores baianos, e cujos resultados darei notícias por aqui. O alfabeto, no sentido do sistema de notação da língua, é o mesmo, isso está claro! O que muda é apenas o jeito de nomear as letras. E talvez, por isso, fosse mais apropriado falar em “abecê no Nordeste”.

Não se trata de sotaque, mas de nomes outros. Quando essas letras são convocadas a dizer seus nomes e soam em alto e bom som, observamos que esses nomes se aproximam mais do som que lhes são correspondentes: fê, guê, ji, lê, mê, nê, rê, si, como é o caso de outras letras, como o bê, pê, tê, vê, zê, dentre outras letras ditas “oficiais”, e que ninguém estranha. Esses oito sons que se diferenciam do abc convencional dão “pano pra manga” – como se diz.

Mostrei aqui no blog inúmeras ocorrências de desconhecimento e de preconceito contra esse abecê. Um desconhecimento comum é o de que efe é nome e é o som da letra. Ora, esses nomes das letras podem ter, sim, nascido da tentativa de nomeá-las por seus sons, somando-lhes uma vogal de apoio. Mas os nomes das letras são unidades lexicais, os fonemas não. Fonemas são unidades representadas por letras (por grafemas), não são lexicalizados. Precisamos, como venho discutindo aqui, ir além dessa conclusão de que efe é nome e é fonema, som. É engraçado que esses nomes, fê, guê, ji, lê, mê, nê, rê, si, sejam associados à fonética, ao som, mas bê, cê, dê, pê, quê, tê, vê e , construídos pelo mesmo princípio, não o sejam – e tenham, sem pestanejar, o status de nomes de letras! Veremos adiante, na parte 2, que esse argumento se desfaz quando entendemos que em sua própria origem, o alfabeto trazia, em sua essência, essa ideia de o nome das letras darem pistas dos seus sons.

Para esclarecer melhor nossas ideias sobre a questão, podemos recorrer a argumentos pela via das diferenças culturais e variações linguísticas regionais, juntando essa questão às tantas outras referentes aos falares nordestinos. Os argumentos culturais e sociolinguísticos são, de fato, primordiais nessa discussão. Entretanto, eu sempre quis poder aprofundar mais a discussão sobre isso. Para além da variação e da defesa dos traços que compõem a nossa identidade cultural, eu queria compreender onde vêm esses dois abecês distintos e seus usos no Brasil, que notícias essa origem e seus usos no ensino da língua de antigamente nos dão sobre sua legitimidade, e trazer a discussão para o campo da alfabetização hoje. E esse estudo, que traz algumas luzes e muitos questionamentos, nasceu desse desejo. O abecê usado na Bahia sempre me intrigou.

Somou-se a isso, o fato de que meu marido, José Carlos Rêgo, artista da Canastra Real – Contos em cantos, tem o “Abecê do Sertão”, de Luiz Gonzaga e Zé Dantas, no repertório de algumas apresentações e, sempre que a conversa é com professores, lembra do que me ouviu falar a esse propósito, uma vez, referente ao princípio acrofônico. Voltaremos a essa questão adiante. Por ora, refiro-me a isso, pois essa conversa sobre o abecê com a Canastra – uma das conversas que temos entre nós nessa nossa parceria por temáticas afins – foi um dos empurrõezinhos que tive para, enfim, retomar essa ideia, essa vontade, e concretizar a escrita desse texto. Aliás, planejar uma aula-espetáculo para alfabetizadores, junto com a Canastra Real, é um dos planos para hora dessas....mas eu fico só com a parte aula...a parte de se “amostrar” do espetáculo, fica com eles!

http://canastrareal.wixsite.com/canastrareal/
Além das defesas e dos ataques ao nosso abecê, ouvi  contar também situações em que educadores e pessoas em geral, de fora do Nordeste, nunca tinham ouvido falar desse modo de pronunciar os nomes das letras do alfabeto. Mesmo nordestinos, salvo parte dos baianos, parecem ter certo estranhamento com essa forma de nomear as letras, bem como há baianos que atribuem esse uso a algo antigo, limitado ao momento da alfabetização. Assim, será que faz sentido mesmo denominá-lo alfabeto ou abecê nordestino, ou ainda abecedário nordestino? Ele é/foi realmente do Nordeste? Em todo o Nordeste? Só no Nordeste? Só no sertão? É abecê da Bahia? É um abecê só da alfabetização inicial ou esses nomes perduravam para se referir às letras? São questões instigantes, discutiremos sobre elas adiante, por ora, quero assumir a expressão “abecê nordestino”, mas com essas ressalvas. É bom lembrarmos que a questão da identidade cultural regional não é tão simples. É preciso, como ressalta Albuquerque Jr. (2009), desmistificar a ideia de um Nordeste culturalmente homogêneo.

Recentemente foi lançado o documentário “O Sertão como se fala”, realizado pela equipe do Coletivo Adiante, já referido aqui no blog. Revendo o trailer:


Como alguém muito interessada sobre isso, confesso que eu fui assistir ao filme esperando um pouco mais de informações sobre a nosso abecê. O filme é muito bacana e cumpre o papel que lhe cabe como “ensaio audiovisual”, apresentando e provocando esteticamente a discussão, divulgando a identidade cultural e linguística na contramão do que circula na grande mídia e no senso comum. Mas, ainda assim, me deixou com gostinho que “quero mais”. Mas isso porque eu já tinha esse interesse prévio e o desejo de entender mais as raízes desses dois abecês. Apesar de anunciar que se propunha a investigar as raízes deste modo de falar, a partir de narrativas de alunos e professores que aprenderam e ensinam as letras do alfabeto do sertão, bem como narrativas de artistas da palavra e alguns estudiosos, o documentário não mergulha muito nessas origens – visa apenas a mostrar que ele ainda está por ali seja em uso ou na memória de habitantes do sertão nordestino. Tem um mérito grande de apresentar esse modo de pronunciar as letras como parte de uma herança cultural sertaneja mais ampla, explora aspectos dessa cultura e até a relação desse falar com outros aspectos que criam a ideia – e o filme a problematiza – de um nordeste esquecido, leigo, atrasado. Aponta também o aspecto do desaparecimento dessa prática pela padronização do alfabeto, o que é bastante interessante. Uma coisa bem bonita é ver os artistas da palavra ressaltarem a poética do nosso abecê, em contrapartida ao uso padrão do abecê "oficial". 
Mas achei que há pouca investigação, de fato, com foco nas raízes e nos usos desse abecê, culturalmente e linguisticamente, talvez, justamente, pela pouca informação que temos disponível sobre o tema. No próprio site do projeto podemos ler:
Tendo em vista a falta de material de pesquisa acessível e produções que tratem sobre o tema, o “Sertão como se fala” pretende construir um registro artístico de aspectos históricos e sociais que podem estar em extinção no Brasil e propiciar uma reflexão crítica sobre o imaginário popular, social e político do povo sertanejo. Deste modo, o filme terá como característica a responsabilidade social e cultural de manter viva a memória, o pensar e também de valorizar a cultura brasileira – em especial a da região sertaneja, aquela de maior miséria e  desigualdade do país. 
Claro que entendo que se trata, aí, do registro artístico de uma questão sociocultural e histórica, e não de uma pesquisa científica e, de fato, como já sublinhei, há pouco material sobre o tema. Mas considerando a intenção dos realizadores em contribuir para valorizar e manter viva essa memória, esperei que a perplexidade das indagações sobre os usos desse alfabeto levassem a uma construção discursiva mais substantiva. Por vezes, a realidade dos professores leigos de antigamente e um uso não-padrão do alfabeto quase ficam valendo como explicações da origem desse falar, o que me pareceu muito simplório e ainda sob a égide de certa primazia cultural do outro alfabeto. O letrado? Estaria aí em jogo um anúncio de um suposto conflito entre o registro regional oral e o registro escrito, letrado, mais erudito? Está certo que o alfabeto nordestino pode ter se propagado oralmente, a partir de mutações que foram estabelecidas por certa tentativa de facilitação da alfabetização, assim como há aí também algo do conflito que se estabelece entre o ensino da escrita tipicamente escolar, fundado na norma culta, e os diferentes usos informais e populares da língua, como discute Colello (2011, p. 65). Mas a história parece que é bem mais complexa do que isso, como veremos adiante, na parte 3 do texto. Além do mais, práticas orais e práticas letradas se imbricam de formas bem mais complexas do que polaridades estanques dão conta. A professora que me alfabetizou, aqui em uma escola particular renomada de Salvador não era leiga! O ensino da escrita tipicamente escolar na Bahia, mesmo na capital, incorporou esse jeito de dizer os nomes das letras. Por isso mesmo, uso, preferencialmente, a expressão “abecê do Nordeste” e não “do sertão”. Precisamos olhar para esse fenômeno de modo mais amplo.

Claro que a produção audiovisual referida vale, e muito, por chamar a atenção a um aspecto que pode estar se acabando, devido à “colonização” do modo supostamente “correto” de pronunciar as letras e por divulgar e propiciar uma reflexão crítica sobre essa história e herança cultural do Brasil. Só por isso, já é válida. Para mim, valeu também por saber que tem outros estados em que ainda “se ouve tanto ê”... porque perguntando aqui e ali a gente da capital, em outros estados, vi pouca presença desse abecê na referência das pessoas. Temos ele ainda vivo em Salvador. E porque é muito bonito, bem realizado, instigante.

O foco do filme é esse mesmo, cultural. Linguisticamente, os argumentos ficam ainda vagos, mas isso porque é próprio ao filme trazer a questão pelas vozes dos moradores dos municípios. E nessas vozes, aparecem alguns elementos, mas não houve intenção de uma costura discursiva que desse pistas sobre esse modo de pronunciar as letras e seu uso. Com certeza, além de talvez não o intencionaram, os realizadores se esbarraram nas lacunas de informação, nos limites entre os objetivos de uma obra audiovisual e de um estudo mais aprofundado. E aí, justamente, entram outras referências... Nem tudo que era minha expectativa, era intenção deles com o filme. Claro! A vontade de entender mais era minha! Assim, como eu não sei compor nem cantar, como Seu Lua, nem fazer filmes, como Leandro o Coletivo, eu pesquiso...eu estudo...eu provoco...eu escrevo... Minha contribuição!

O lugar do qual eu falo, entretanto, reafirmo, é de educadora, interessada no campo da linguagem, da alfabetização e da cultura escrita como parte da cultura mais ampla. Assim, preocupo-me não apenas com os aspectos histórico-sociais dessa discussão, da defesa de um modo culturalmente legítimo de nomear as letras, mas também, seu aspecto pedagógico. Portanto, além de buscar entender – na medida do possível – um pouco mais sobre a questão desses dois modos distintos de pronunciar o alfabeto no Brasil, pretendo tecer considerações também a respeito do uso das letras e suas relações com as unidades sonoras da língua, como parte do processo de alfabetização e sobre a legitimidade e a pertinência, em termos linguísticos, do alfabeto nordestino na alfabetização. Disso, aí sim, eu entendo um pouco mais... Não se trata de argumentar sobre substituir o “tradicionalmente” usado, nem folclorizar a variação regional. O que quero é que ele possa ser ensinado, como foi por muito tempo – e ainda o é – em alguns lugares da região nordestina, ao lado desse, como um outro modo de designar as letras – e não como vício, erro, ignorância, como por vezes lhe é atribuído, ou mesmo como uma inventividade original – que também, provavelmente, não o é. E para deixar claro, igualmente, como ele pode favorecer, sim, o processo de alfabetização. Aliás, “tradicionalmente usado” é algo muito relativo, e, nesse caso, pode não significar precedência no uso...pois poderíamos indagar: esse uso nordestino não seria um retorno a uma lógica original do alfabeto? Essa questão será aprofundada adiante, na parte 2 desse estudo.

Estrutura

Assim, com essas intenções, o texto se organiza, aqui no blog, em seis partes (e será postado aqui por partes), conforme indicado no sumário, sendo que, na parte 1, após essa Introdução, a discussão sobre esse lugar das letras do alfabeto na alfabetização é, justamente, colocada e iniciada, seguindo-se da apresentação da questão que envolve o chamado alfabeto nordestino, trazendo um argumento de base e transversal a todos os outros que é a questão da variação linguística. As três partes que se seguem, que constituem o estudo sobre o tema, serão retrabalhadas também e publicadas em uma brochura impressa, que sairá em breve. Aqui no blog vou trazer apenas um resumo das questões que serão discutidas na publicação, que será também disponibilizada para download aqui, quando pronta.

Na parte 2 do texto (segundo post dessa série), serão apresentados alguns argumentos da história da escrita – em particular da história do alfabeto – que podem dar pistas para entendermos melhor a problemática em questão, especialmente a origem dos nomes das letras do alfabeto latino e sua evolução para o português. O efe, gê, jota, ele, eme, ene, erre, esse, têm, todas elas, data de nascimento! Isso tem, como veremos, implicações na discussão em questão, sobretudo na minimização da polêmica sobre o que seja o “alfabeto correto”. 

Já na parte 3, os argumentos serão da história da alfabetização no Brasil, da história das metodologias de ensino da escrita, que inclui a temática do nome das letras. Embora esta seja uma história repleta de lacunas, havendo pouca informação efetiva sobre essa questão em particular – ao menos pouca informação divulgada – ela pode nos ajudar, ao menos, a entender a questão como algo que vai além da regionalidade, a levantar hipóteses sobre o porquê da designação diversa de algumas letras e a compreender a origem (nada nordestina) e os motivos (nada infundados) da ideia da facilitação da alfabetização, pela nomeação das letras próxima a seus sons.

A parte 4 traz os argumentos de pesquisas atuais sobre o papel e o efeito do conhecimento do nome das letras na alfabetização, na apropriação do princípio alfabético, ou seja, no estabelecimento das relações entre fonemas e grafemas. Também aqui há fortes indícios para argumentar sobre a legitimidade da nomeação das letras no alfabeto nordestino.

O intuito de buscar esses argumentos, no entanto, ao lado da defesa das variações linguísticas, não é alegar precedência histórica para entrar em disputas, nem explicar para justificar nosso abecê, buscando aval dos que supostamente usam o abecê “correto” (não precisamos de aval para usar nosso abecê), mas para mostrar que a alternância entre as duas formas de nomear as letras existe desde a origem do alfabeto latino e, na língua portuguesa, também em Portugal, e desde o início da história da alfabetização no Brasil.

A parte 5, por sua vez, que será postada apenas aqui no blog, por enquanto, trará a comunicação dos resultados de uma mini pesquisa feita sobre o uso dos abecês por os professores de alguns municípios baianos, onde, ao que parece, esse uso ainda resiste, insiste, se faz presente, vivo. Mesmo na capital! Esses dados podem revelar muito sobre essa permanência ou não do uso do alfabeto, dentre outros aspectos, coisa que vemos assistematicamente aqui e ali relatadas. Veremos. Esses dados serão apresentados também em artigos, mas não na publicação impressa do estudo. Não por enquanto.


A parte 6 será construída aos poucos, sempre dinâmica, acolhendo novas contribuições. Serão apresentados lá os depoimentos de estudiosos do campo da linguagem, da alfabetização, depoimentos de professores, e quiçá de nordestinos em geral, com suas memórias...e de não nordestinos tocados, de algum modo pelo tema, bem como contribuições de artistas, escritores, que queiram contribuir com algum “comentário” por via de linguagens e gêneros diversos: ilustração, tirinha, cordel, crônica...o que for. Enfim, contribuição de todos que quiserem e puderem contribuir, seja com algum alinhavo ou desalinho, para a essa discussão, bonita e pertinente, sobre o nosso alfabeto. E ainda tem a parte dos comentários no próprio blog...aberta a todos!

Vamos continuar a conversa na Parte 1, aqui.

terça-feira, 5 de setembro de 2017

Décima provocação sobre o abecê nordestino


Essa décima provocação é para divulgar mais sobre o documentário O sertão como se fala, sobre o modo de nomear as letras no Nordeste, mas também, sempre oportunidade de rediscutir sobre a questão.

Um programa de TV da Assembleia Legislativa de Minas Gerais fez uma entrevista com Leandro Lopes, realizador do filme O Sertão como se fala. O mote do documentário é o abecedário nordestino, mas o filme é muito mais do que sobre isso! No momento está correndo festivais, mas, em breve, será disponibilizado. Assistam!

Enquanto isso, vejam a entrevista, em três partes.

Parte 1: nessa parte, o documentário é apresentado e se discute, basicamente, a questão do abecedário e as questões culturais da região.


Como estou estudando sobre o tema, não posso deixar de comentar uma ou outra coisa. Como temos visto por aqui, nos posts sobre o tema, enfatizo que, na Bahia, esse abecê não é apenas do sertão, mas também da capital. Gerações e gerações de soteropolitanos, assim como os baianos do interior, aprenderam assim. E ainda se ensina em algumas escolas... O sertão, seja em sua definição geográfica, como sub-região do Nordeste, seja em sua construção cultural identitária e imaginária, não abarca a cidade de Salvador. Por isso, tenho dito que prefiro falar em abecê nordestino, embora eu reconheça sua forte identidade sertaneja.

Além disso, como também já insisti, trata-se de nomes de letras, não de sons. Letras mais próximos dos seus “sons” – da fonética, como Leandro ressalta – mas são nomes também. Por que é engraçado que esses nomes, fê, guê, ji, lê, mê, nê, rê, si, sejam associados à fonética, ao som, mas bê, cê, dê, pê, quê, tê, vê e não o sejam...e tenham, sem pestanejar, o status de nomes de letras? Esse argumento se desfaz quando entendemos que em sua própria origem, o alfabeto trazia, em sua essência, essa ideia de o nome das letras darem pistas dos seus sons.

Parte 2: nessa parte, a conversa é mais sobre o sistema de financiamento do filme.


Parte 3: nessa parte, conversa-se sobre a viagem, a operacionalização do projeto, mas também retoma-se a questão do abecê, lá entre os minutos 6:28 a 8’. E dou essa precisão apenas porque quero fazer outra observação aqui.


Leandro defende o abecê do sertão como identidade cultural dos nordestinos sertanejos, e teve a curiosidade e a iniciativa de correr o Nordeste para mapear, em forma de documentário, a quantas anda essa questão hoje. Ainda assim, acolhe a naturalidade de seu desaparecimento, talvez por tomá-lo como um modo circunstancial de falar o abecê, apenas no sertão, apenas no momento da alfabetização.

Eu não acho que o "esquecimento", a "perda" desse abecê, seja um processo tão natural assim... Depende do que seja isso de "natural"... O processo histórico é natural? O que acho é que há forças de "colonização" e de discriminação que atuam aí, e que podemos, sim, ao menos, criar resistência, pelo conhecimento, pelo reconhecimento... como é o que eu tento aqui contribuir, com esse estudo, que é como eles também contribuem com o filme. Penso que o Doc talvez possa mais do que ele pretende – que o abecê do sertão viva como memória. Tomara!

Tudo bem defender que nosso abecê viva, ao menos, como registro histórico. Mas eu, de minha parte, quero mais! Como baiana, educadora, “alfabetizadora”, que vejo ele ainda por aí nas nossas escolas, na recitação de nossas crianças, na referência de adultos em situações cotidianas em que referir-se às letras se faz necessário, acho que, pelo menos na Bahia, ele pode ter vida para além da memória. Eu, que o vejo para além do sertão, para além do Nordeste – como um dos modos de falar o alfabeto no Brasil – torço para que permaneça vivo mais do que como história!

Precisamos, nós nordestinos, reconhecer esse modo de nomear as letras como um modo nosso, tão funcional e correto quanto o outro, conhecer sua história, sua legitimidade cultural e linguística, para que o Brasil todo também possa conhecê-lo e reconhecê-lo!

Para assistir ao filme: 
Lica